O Comitê Brasileiro Pierre de Coubertin (CBPC) dá prosseguimento à série mensal de matérias que trarão ao público traduções inéditas de escritos de Pierre de Coubertin. De abril de 2025 a março de 2026, diversos textos serão traduzidos para o português, resgatando o legado do fundador do Movimento Olímpico para as novas gerações de leitores e entusiastas do esporte.
O quarto texto da série, “Sport et diplomatie”, foi publicado na Revue Olympique de outubro de 1912, e apresenta uma reflexão sobre o esporte como instrumento de aproximação e influência nas relações internacionais, demonstrando como encontros informais em torno de atividades esportivas – seja no tênis, na equitação ou no iatismo – criam oportunidades privilegiadas de diálogo, confiança e persuasão que fogem ao rígido protocolo das chancelarias tradicionais. A seguir, a tradução integral do texto:
SPORT ET DIPLOMATIE
Já se passaram cerca de vinte anos desde o surgimento dos “tênis diplomáticos”. No início, eram simples chás das cinco horas acompanhados de partidas de tênis; com o tempo, transformaram‑se em partidas de tênis com o chá servindo de pretexto – mas o caráter permaneceu o mesmo. Os diplomatas acreditados num posto reuniam‑se entre si e, no plano das conversas, predominavam os assuntos femininos, muitas fofoquinhas e flertes discretos. A diplomacia propriamente dita pouco lucrava com isso.
Então, entraram em cena chefes de Estado esportistas, príncipes e ministros apaixonados pelo esporte, e tudo mudou de figura. O esporte ganhou lugar na política internacional e passou a desempenhar um papel secundário – sem dúvida – mas capaz, em certas ocasiões, de resolver de modo rápido e vantajoso inúmeros pontos importantes; acima de tudo, de criar “influências”, hábitos e oportunidades de encontros íntimos que um agente de espírito atento sabe aproveitar em benefício de seu país e de sua missão.
O soberano é um ávido praticante de iatismo? Imagine as vantagens de ter junto a ele um embaixador ou ministro dono de um belo iate. Nos breves cruzeiros, durante regatas ou festas náuticas, supostamente a política dá férias… Será que você acredita nisso? Pelo contrário, é justamente então que uma palavra oportuna, uma meia‑confidência sussurrada entre o “dolce far niente” abre caminho para negociações subsequentes, para acordos satisfatórios cujas fórmulas jamais seriam encontradas nos austeros salões de chancelarias tradicionalistas. Deputados, senadores e ministros – titulares do cargo de primeiro‑ministro ou da pasta de Relações Exteriores – mostram‑se ainda mais sensíveis ao clima de descontração criado pelo prazer esportivo compartilhado.
Coloque, ao lado de um governante entusiasta da esgrima, um hábil espadachim que frequente uma sala de armas reservada a poucos: verá o prestígio desse diplomata “sportsman” e a patente inferioridade dos agentes de colarinho engomado, incapazes de dedicar um dia ao trabalho muscular sem perder a agudeza intelectual exigida por seu ofício.
Entretanto, os bons burocratas que supervisionam de longe o corpo diplomático não compreendem essas sutilezas. No máximo, reconhecem a utilidade das caçadas oficiais – e justamente nesses dias o protocolo impera a tal ponto que o “placar” final é meticulosamente “ajustado” para distribuir o número de peças abatidas conforme a importância de cada convidado. Certa vez, um soberano da Europa Central divertiu‑se ao notar que derrubara mais animais do que o número de disparos de seu rifle. Em caçadas tão rigidamente coreografadas, não há espaço para uma conversa íntima ou uma confidência reservada – olhos e ouvidos se apertam dos dois lados. Restam as incursões de caça de vários dias, mas são raras; muito mais proveitosos são os passeios a cavalo ou as partidas de tênis repetidas várias vezes por semana.
Tudo isso, porém, não deve levar à conclusão – conclusão, aliás, desnecessária – de que o esporte seja a principal qualidade a considerar na escolha de um diplomata para um posto relevante. Muito longe disso. Contudo, ninguém pode negar que o esporte oferece o grande mérito de proporcionar frequentes e excelentes oportunidades de encontros reservados. E criar essas ocasiões sempre foi uma das grandes habilidades de um diplomata: Talleyrand era mestre nisso. Em nível bem diferente, vemos homens comuns obterem sucesso justamente por tornarem‑se a “persona grata” que se acolhe com agrado e com quem se prolongam espontaneamente as conversas.
Para ilustrar, duas breves anedotas:
1- Havia um poderoso soberano a quem os embaixadores civis não tinham fácil acesso, ao passo que os embaixadores militares o encontravam, por direito, todas as manhãs de sábado, na parada tradicional. Cansado dessa situação, um embaixador estritamente civil apareceu, num belo sábado, uniformizado em coronel e montado num magnífico cavalo. Os rivais, indignados, descobriram que, durante a semana, seu rei o havia nomeado coronel de um regimento de voluntários. A manobra foi perfeita. Afinal, é possível tornar‑se coronel em oito dias, mas não se faz “sportsman” tão rápido assim.
2- Numa grande república cujo chefe amava tanto o tênis quanto a equitação, chegou um embaixador igualmente adepto do primeiro, mas sem oportunidade de praticar o segundo – o que o colocava em desvantagem frente a um rival já afeito ao cavalo. Determinado, nosso diplomata ambicioso dedicou‑se com afinco e, em pouco tempo, tornou‑se o companheiro preferido das aventuras equestres presidenciais.
Entre aquelas quatro potências aludidas, hoje existem vínculos de amizade vivos e sólidos. O esporte não foi o instrumento dominante nessa empreitada, certamente, mas acredite: a ele contribuiu gentilmente.
COUBERTIN, Pierre. Sport et Diplomatie. In: Revue Olympique, 12e année, octobre 1912, pp.157-159.
Em um mundo marcado por crescentes tensões geopolíticas, com disputas comerciais, conflitos regionais e desafios globais como as mudanças climáticas e as crises migratórias, a lição de Coubertin sobre a capacidade do esporte de abrir canais informais de diálogo ganha nova urgência no Movimento Olímpico de 2025. Ao promover um ambiente de cooperação entre nações diferente do protocolo formal da diplomacia, os Jogos Olímpicos reafirmam seu papel histórico como “terra neutra” onde líderes, atletas e representantes culturais podem, em torno de valores comuns como respeito, amizade e excelência, construir pontes de confiança e compreensão mútua. Assim como os “tênis diplomáticos” do início do século XX ofereciam oportunidades de influenciar decisões de Estado longe dos salões oficiais, os Jogos Olímpicos tornam‑se espaços estratégicos para amenizar divergências, estimular parcerias e renovar, pela via do convívio esportivo, a esperança de um mundo pacífico. Dessa forma, ao canalizar a energia competitiva e festiva em prol do entendimento internacional, o Movimento Olímpico permanece fiel ao ideal Coubertiniano de usar o esporte não apenas como espetáculo, mas como potente ferramenta de diplomacia e de construção de paz.