O Comitê Brasileiro Pierre de Coubertin (CBPC) dá prosseguimento à série mensal de matérias que trarão ao público traduções inéditas de escritos de Pierre de Coubertin. De abril de 2025 a março de 2026, diversos textos serão traduzidos para o português, resgatando o legado do fundador do Movimento Olímpico para as novas gerações de leitores e entusiastas do esporte.
O quinto texto da série, “Société de l’Histoire Universelle”, é um folheto assinado por Pierre de Coubertin, datado de 1919. Ele apresenta uma crítica ao ensino histórico de viés estritamente nacionalista e propõe uma reforma pedagógica: defender uma história situada no quadro cronológico universal, sempre vinculada aos acontecimentos paralelos de outros povos, e privilegiar temas de real alcance (dimensões territoriais, demografia, línguas, desenvolvimento social, intercâmbios econômicos e culturais).
A seguir, a tradução integral do texto:
SOCIÉTÉ DE L’HISTOIRE UNIVERSELLE
“É utópico acreditar num possível amor entre os povos uns pelos outros; contudo, por seu próprio interesse, deve-se incentivá-los a cultivar um respeito mútuo. Vimos qual é o valor da paz baseada nos armamentos e como ela conduz à insegurança geral, sem que se possa evitar a ruptura acidental de um equilíbrio sempre instável. Quanto à compreensão internacional, ela ainda é inexistente, porque não pode nascer nem das trocas comerciais nem dos contatos literários. A literatura reflete apenas certos aspetos da alma de um povo. Só a história revela a sua essência irredutível — desde que, porém, os anais de cada povo permaneçam em seu lugar na grande mosaico universal. Tal não é o caso. Para além dos ensinamentos conscientemente deturpados pelo orgulho ou pela avareza nacionalistas, os estudos históricos são quase em toda parte concebidos e conduzidos segundo os dados fornecidos por um ângulo de visão local. Disto resultam não só a inevitável deformação dos factos quanto à sua importância e às suas consequências reais e a oposição fatal de pontos de vista nacionais tornados inconciliáveis, mas também o hábito do espírito às falsas proporções de tempo e espaço e o declínio do sentido crítico.
Por esses motivos, a Société de l’Histoire Universelle está persuadida de servir o bem público ao estabelecer os princípios seguintes:
A) A história de uma nação e a de um período só podem ser ensinadas proveitosamente se forem previamente situadas no quadro geral dos séculos históricos.
B) Nenhum período da história nacional deve ser estudado sem referência contínua aos acontecimentos concomitantes da história universal.
C) É desejável afastar do ensino os feitos bélicos e os tratados ou convenções que não tenham tido consequências profundas e duradouras, assim como as cronologias sistemáticas e os relatos anedóticos sem alcance.
D) A indicação das dimensões territoriais e dos números de população é de primeira importância em história; do mesmo modo, a menção das línguas em uso e os dados relativos ao estado social, ao desenvolvimento industrial e universitário, à interpenetração económica e artística.
E) A história de um povo desenha-se, em geral, de modo ininterrupto, e não convém suprimir sem explicação os períodos de letargia que sucedem às épocas de atividade.
A S. H. U. apela a todos os que aderem a essas doutrinas e pede-lhes que a ajudem a propagá-las”.
Pierre de Coubertin, 1919.
A História oferece ferramentas essenciais para compreender os Jogos Olímpicos como um fenômeno cultural, político e educacional que ultrapassa a simples competição esportiva: trata-se de um processo histórico que articula memórias, projetos de modernização e práticas de construção de identidade coletiva. Lida com fontes, contextos e trajetórias: procedimentos que permitem situar os Jogos na longa duração das transformações sociais e nas intenções dos seus protagonistas. A análise histórica revela como os eventos olímpicos funcionam simultaneamente como palco de rivalidades nacionais, laboratório de novas formas de internacionalismo e instrumento de pedagogia cívica.
Pierre de Coubertin ocupa papel central nessa narrativa: como historiador por formação intelectual e como reformador educacional, ele concebeu os Jogos Modernos não apenas como um retorno a um passado idealizado, mas como um projeto deliberado de formação moral e física das novas gerações. Sua ação, desde a articulação intelectual que levou à criação do Comitê Olímpico Internacional até a formulação dos ideais Olímpicos, deve ser entendida historicamente: Coubertin dialogava com correntes do seu tempo (nacionalismo, reformas escolares, e o culto moderno ao corpo) e projetou os Jogos como instrumento para moldar sujeitos e sociedades.
Estudar a relação entre História, Coubertin e os Jogos Olímpicos permite, portanto, enxergar os Jogos como produto e produtor de história: produto das tensões e discursos da virada dos séculos XIX–XX; produtor de mitos, memórias institucionais e práticas políticas que se reproduzem e se transformam ao longo do tempo. A perspectiva histórica, aplicada ao legado Coubertiniano, abre caminho para avaliar criticamente tanto os elementos emancipatórios do ideal olímpico quanto suas limitações e contradições, oferecendo um quadro mais rico para compreender o significado presente e passado dos Jogos.
(fonte da imagem : Olympics.com)
