O Comitê Brasileiro Pierre de Coubertin (CBPC) dá prosseguimento à série mensal de matérias que trarão ao público traduções inéditas de escritos de Pierre de Coubertin. De abril de 2025 a março de 2026, vários textos serão traduzidos para o português, resgatando o legado do fundador do Movimento Olímpico para as novas gerações de leitores e entusiastas do esporte.
O terceiro texto da série, “Le cyclisme aux Jeux Olympiques”, foi publicado na Revue Olympique de março de 1909, e apresenta uma análise crítica de Coubertin sobre o lugar do ciclismo no Programa Olímpico. A seguir, a tradução integral:
LE CYCLISME AUX JEUX OLYMPIQUES
Uma das questões que se colocará nesta primavera diante do Comitê Olímpico Internacional diz respeito à possível exclusão do ciclismo das próximas Olimpíadas. Essa exclusão tem sido reclamada por vários setores e conta, no próprio Comitê, com calorosos defensores. Excluir um esporte de um programa que pretende abranger todos eles é algo grave: equivale a afirmar que tal atividade não é realmente um esporte ou que, ao menos, deixou de sê-lo. Esse é exatamente o argumento dos que se opõem ao ciclismo, e não nos parece inteiramente justificável.
É inegável, porém, que as corridas de bicicleta, tal como hoje são compreendidas nos velódromos e organizadas pela maioria das federações, não deveriam mais figurar em um Programa Olímpico. Elas perderam completamente seu valor esportivo. Os competidores tornam-se máquinas cujo único propósito é fazer apostadores ganharem ou perderem dinheiro. Giram interminavelmente em círculos, sem que nada de arriscado ou individual, nada de intencional ou pensado, se manifeste em suas ações ou ao seu redor. Um espetáculo assim é estúpido e feio. Chegou-se a qualificá-lo de entorpecente – epíteto que, convenhamos, não está longe de ser merecido.
Mas a culpa é de quem? Da bicicleta, esse magnífico instrumento de locomoção esportiva – ou antes dos homens que dela fazem uso equivocado? E se o utilizam mal, não haveria uma maneira mais adequada de empregar esse meio? Sim: a forma de outrora, dos primórdios, quando o ciclista era um desbravador das estradas, orgulhava-se de seguir por qualquer caminho, não se deixava intimidar por obstáculo algum e chegava ao fim do percurso tendo gastado, além de sua energia e resistência musculares, várias e nobres qualidades de iniciativa, habilidade e reflexão. Note-se que as corridas de estrada já não são permitidas em muitos países. Mas, em primeiro lugar, manter essa proibição dependeria, sem dúvida, do modo como tais provas fossem concebidas e organizadas.
Além disso, quem não testemunhou o surgimento, nas competições equestres, dos chamados “percursos de caça”, que encerram o germe de uma evolução esportiva considerável e benéfica? O princípio pode ter muitas aplicações, e nada impede que o ciclismo dele se inspire. O polo se joga a cavalo, mas também se joga de bicicleta – e, nessa segunda forma, é um jogo muito bonito e extremamente empolgante.
Em todo caso, é preciso tentar algo para que o ciclismo recupere sua dignidade Olímpica. Os entusiastas dos velódromos estão fazendo um trabalho tão eficaz que, já tendo excluído o ciclismo do Programa Olímpico, ele pode, um dia, deixar de ser esportivo por completo. A questão é saber se essa última etapa já foi ultrapassada; de nossa parte, não cremos que sim.
COUBERTIN, Pierre de. Le cyclisme aux Jeux Olympiques. [Cycling and the Olympic Games.] In: Revue Olympique, 9e année, mars 1909, pp.35-36.
DIA MUNDIAL DA BICICLETA
No texto de 1909, Coubertin alerta para o risco de o ciclismo se tornar um espetáculo desprovido de essência esportiva – um alerta que mantém surpreendente atualidade diante da preocupação global com a mobilidade sustentável. Em 12 de abril de 2018, a Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou a Resolução A/RES/72/272, proclamando o dia 03 de junho como Dia Mundial da Bicicleta. Entre seus principais pontos, a ONU:
Reconhece a longevidade e versatilidade da bicicleta como meio de transporte sustentável, limpo, acessível e ecológico, capaz de melhorar a saúde e a gestão ambiental.
Encoraja eventos ciclísticos organizados em espírito de paz, tolerância e inclusão social, ressaltando o potencial unificador da bicicleta.
Solicita campanhas de conscientização e a integração da bicicleta em políticas de transporte e infraestrutura urbana, visando prevenir doenças não transmissíveis e fortalecer o bem-estar coletivo.
Essas diretrizes ecoam diretamente o anseio de Coubertin por um ciclismo que valorize a criatividade, a iniciativa e a reflexão do atleta, mais do que a mera repetição mecanizada de voltas em um velódromo. A ONU, ao promover a bicicleta como símbolo de desenvolvimento sustentável, resgata justamente o “espírito de outrora” que o Barão de Coubertin defendia.
O PRÊMIO DA ONU E O COMITÊ BRASILEIRO PIERRE DE COUBERTIN

Em 17 de setembro de 2021, o Prof. Nelson Todt, presidente do CBPC, recebeu da ONU um reconhecimento por suas ações de divulgação do Dia Mundial da Bicicleta e pela valorização da figura de Pierre de Coubertin. Todt destaca que seu trabalho une três elementos-chave:
Resgate histórico: promover o conhecimento sobre Coubertin e a origem do esporte moderno;
Mobilização social: articular eventos e parcerias para celebrar o uso da bicicleta em prol da saúde, da inclusão e da paz;
Educação e infraestrutura: advogar por políticas públicas que tornem a bicicleta protagonista na mobilidade urbana brasileira.
Sua trajetória ilustra como o ciclismo, longe de ser apenas um espetáculo de apostas, pode cumprir o papel Olímpico de difundir valores de solidariedade e crescimento pessoal — exatamente o que Coubertin almejava há mais de um século.
RESPEITO, AMIZADE E EXCELÊNCIA
Ao revisitar “Le cyclisme aux Jeux Olympiques” e relacioná-lo com a Resolução da ONU e a atuação de Nelson Todt, reafirmamos que o verdadeiro Espírito Olímpico se fundamenta nos Valores Olímpicos de Respeito, Amizade e Excelência:
Respeito surge quando reconhecemos a bicicleta como instrumento de dignidade humana e ambiental;
Amizade floresce nos eventos esportivos que, seja na Paris de Coubertin ou em qualquer outra cidade, reúnem diferentes gerações em prol de uma causa comum;
Excelência se revela no esforço de cada ciclista, desde os pioneiros das estradas de terra até os defensores das ciclovias urbanas.
Assim, ao pedalar entre passado e presente, mantemos vivo o legado de Coubertin e avançamos rumo a um futuro mais sustentável, inclusivo e pleno de Espírito Olímpico.
Imagem de capa: Olympics.com (fotografia colorida artificialmente através de software de edição de imagem).