O Comitê Brasileiro Pierre de Coubertin dá prosseguimento à série mensal de matérias que trarão ao público brasileiro traduções inéditas de escritos de Pierre de Coubertin. De abril de 2025 a março de 2026, vários textos serão traduzidos para o português, resgatando o legado do fundador do Movimento Olímpico para as novas gerações de leitores e entusiastas do esporte.
O segundo texto oferece um relato minucioso do evento que mobilizou a atenção do mundo nos últimos dias: o Conclave. Publicado em 1903, Le Conclave, de Pierre de Coubertin, examina a evolução histórica desse rito – desde a sua instituição em 1059, quando o Papa Nicolau II transferiu o direito de escolha aos cardeais, até as normas cerimoniais que regulam hoje a reclusão, as votações e a proclamação do novo pontífice.
A riqueza de detalhes confere ao texto não apenas um valor histórico, mas também um profundo sentido de continuidade entre passado e presente. Ao resgatar essas tradições seculares, Coubertin nos conduz a refletir sobre a importância de rituais solenes — religiosos ou esportivos — para fortalecer os laços de comunidade e reforçar valores que transcendem gerações.
O Conclave, por Pierre de Coubertin
No passado, os conclaves eram frequentes; há um século tornaram-se raros, já que Pio IX reinou trinta e um anos e Leão XIII, vinte e cinco. Portanto, a opinião pública não está mais a par das curiosas particularidades dessa instituição, a qual não remonta, como se acredita geralmente, aos primeiros tempos do cristianismo, mas somente ao ano de 1059. Durante dez séculos, os sucessores de São Pedro foram eleitos diretamente pelo clero e pelo povo reunidos. Não se deve, porém, tomar ao pé da letra a expressão “povo”; ela significa, propriamente falando, os chefes dos fiéis; é o sentido que muitas igrejas protestantes atribuem ao associar o pastor às suas ovelhas no governo da comunidade, sem considerar membros da igreja senão as pessoas devidamente inscritas e filiadas. Assim se procedia na Roma primitiva.
Essa eleição direta apresentava inconvenientes crescentes, e o grande Papa Gregório VII já se havia preocupado com isso. Foi Nicolau II quem, em 1059, atribuiu definitivamente a nomeação do Papa exclusivamente aos cardeais. Essa importante reforma jamais foi revertida.
A história dos conclaves encerra mais de um episódio interessante. Cita-se, em primeiro lugar, o famoso conclave de Viterbo, encarregado de escolher um sucessor para Clemente IV (1268). Naquela época, os papas viajavam com frequência e transferiam voluntariamente sua residência temporária de uma cidade para outra; a eleição ocorria na cidade em que o Papa expirava. Reuniram-se, pois, os cardeais em Viterbo, cujo local de estadia aparentemente lhes convinha, pois demoraram dezessete meses em deliberações. Passado esse período, os habitantes, aborrecidos, instituíram a clausura, que até então era apenas teórica: impediram que os membros do conclave saíssem do palácio e lhes forneceram mantimentos como a prisioneiros. Curiosamente, essa medida radical foi ineficaz, e mais dezesseis meses transcorreram sem que do urnas saísse o nome do eleito. Os moradores, perplexos, decidiram então remover o teto da sala de sessões e, com o calor de um sol de verão, os cardeais cederam e escolheram um Papa que, aliás, não era cardeal e nem fazia parte da assembleia.
O interregno durou, dessa vez, pouco menos de três anos. O conclave seguinte foi breve, pois o Papa Gregório X, precavido, estabelecera que, passados cinco dias, os cardeais só receberiam pão e água como alimento. No entanto, essa rigorosa prescrição não se manteve. Vários conclaves ocorreram na França, em Avignon, enquanto os papas ali residiam; houve um em Carpentras, interrompido por um incêndio dramático, e retomado em Lyon, que, após longo tempo, resultou na eleição de João XXI. A partir de Clemente VII, todos os conclaves passaram a realizar-se em Roma.
Naturalmente, o número de membros da assembleia variava conforme a composição do colégio cardinalício: no conclave de Viterbo eram apenas dezoito; no de 1623, que elegeu Urbano VIII e se reuniu no Vaticano exatamente na data de abertura do conclave destinado a nomear o sucessor de Leão XIII, cardeais e suas comitivas encontraram-se, em número de duzentos, apertados em instalações muito restritas; o calor era extremo e logo a malária surgiu, fazendo inúmeras vítimas.
Segundo o jornal Le Temps, seguem-se alguns detalhes circunstanciados e interessantes sobre o andamento das sessões.
Após os “novendiais” — ofícios fúnebres em honra do Papa falecido — e as congregações gerais, os cardeais reúnem-se no décimo dia para celebrar a Missa do Espírito Santo antes de entrarem em conclave. A missa é cantada por um dos cardeais mais antigos da ordem dos presbíteros; ao final, o prelado designado pelo Sacro Colégio pronuncia o sermão para o eligendo Pontifice.
O termo “célula” está consagrado pelo uso, mas não corresponde mais à realidade. Nos dois últimos conclaves, os cardeais e seus conclavistas foram alojados em pequenos apartamentos, cada qual com várias dependências. Para tanto, desocupa-se parte dos locais usualmente ocupados por escritórios ou pessoal do Vaticano. Outros, talvez mais cobiçados, instalam-se nos aposentos decorados com pinturas sublimes, onde meditam.
Por volta das cinco horas da tarde, todos os cardeais reúnem-se na Capela Paulina; o decano entoa o Veni Creator e, precedidos pela cruz, todos encaminham-se à Capela Sistina. Atravessam a Sala Regia, onde, após as orações prescritas e a leitura das constituições papais, tomam o juramento. Introduz-se, primeiro, o prelado mordomo, governador do conclave, depois o marechal do conclave com seus quatro oficiais, seu fidalgo e demais componentes de sua comitiva. O príncipe — um Chigi, cargo hereditário nessa família — ajoelha-se diante do altar e jura, na presença dos cardeais, velar pela segurança deles. Em seguida, tomam o juramento os oficiais da Guarda Suíça, da Guarda Palatina e da gendarmaria, responsáveis, juntamente com o mordomo e o marechal, pela guarda externa do conclave.
Em seguida, os cardeais retiram-se, mas, ainda à noite, o camerlengo e o cardeão-decano recebem, na mesma capela, o juramento dos conclavistas e de todo o pessoal afetado ao serviço interno do conclave: guardar sigilo absoluto e não favorecer qualquer comunicação com o exterior.
Ao regressarem a suas “células”, os cardeais ainda recebem visitas de dignitários e amigos, que ali vão despedir-se antes do isolamento. Por volta de uma hora da madrugada, os cerimoniários convidam todos a sair, tocando sinetas e gritando: “Extra omnes!”.
Todos que não participam do conclave partem. O camerlengo, acompanhado pelos três cardeais chefes das ordens dos bispos, dos presbíteros e dos diáconos, procede à clausura interna; simultaneamente, o mordomo e o marechal do conclave realizam a clausura externa.
Todas as manhãs, os cardeais reúnem-se para a missa comunitária na Capela Paulina — missa baixíssima celebrada pelo prelado sacrista; no primeiro dia, presidida pelo decano, que dá a comunhão a todos. Nos dias seguintes, cada um celebra individualmente sua missa em altares na Sala Ducal, mas deve assistir à missa conventual, após a qual reúnem-se às dez horas na Capela Sistina para as votações.
A disposição interna da Capela Sistina, usada como sala de escrutínio, é a seguinte: no degrau mais alto do altar, no lado do Evangelho, fica o trono destinado ao novo Papa, ao lado da cruz. Ao longo das paredes estão dispostas as cadeiras dos cardeais, cada qual sob dossel de seda verde, se criado por antecessores, ou de seda violeta, se criado pelo Papa falecido. Esses dosséis permanecem erguidos, mas podem ser abaixados por cordões; ao término da eleição, todos são deixados cair, exceto o do eleito, que permanece suspenso, enquanto os cardeais vizinhos se afastam em sinal de respeito.
Em frente a cada cardeal há uma pequena mesa com seu brasão e nome em latim, um papel antimanchas de couro preto, papel, penas, tinta, velas. A primeira cadeira do lado do Evangelho pertence ao decano; em seguida, sentam-se cardeais-bispos e cardeais-presbíteros, segundo a ordem de ingresso no Sacro Colégio. Do lado da Epístola ficam os cardeais-diáconos.
No centro da capela há seis mesinhas para aqueles que receiem ser vistos pelos vizinhos ao escrever seus boletins. Perto do altar, há outra mesa para os boletins, com pães para selar, cera, castiçais, fósforos e novelos de cordão de seda vermelha, conforme as rígidas regras de dobra e selagem, sob pena de nulidade. Também existe um móvel de nogueira, dividido em setenta compartimentos, cada um recebendo uma bola com o nome de um cardeal. Essas bolas são retiradas de uma bolsa de seda violeta, durante os escrutínios, pelo último cardinal-diácono, pelos três cardeais-escrutinadores e pelos três cardeais ditos “enfermeiros”, encarregados de recolher, nos aposentos, os boletins dos enfermos e colocá-los na urna, um móvel próximo aos cálices que servem de urna.
Atrás do altar, há uma pequena lareira onde, após cada votação, queimam-se os boletins. Durante o conclave, os romanos costumam observar, manhã e noite, se da Capela Sistina sobe fumaça: sinal de que o escrutínio não produziu resultado.
Os cardeais retornam à Capela Sistina para as sessões, acompanhados de seus conclavistas, recebendo as últimas instruções cerimoniais. Depois, todos saem, deixando os cardeais sozinhos; um deles tranca a porta.
As eleições decorrem segundo três modos tradicionais:
- Inspiração, adoração ou aclamação: quando os cardeais, num sentimento unânime, nomeiam espontaneamente o Papa. Qualquer oposição anula a aclamação.
- Compromisso: quando, para superar dificuldades insuperáveis, os cardeais concordam em confiar a decisão a um ou mais deles. É necessária a anuência de todos, e o veto de um único cardeal anula o compromisso. Além disso, assinam previamente um ato determinando as obrigações de quem recebe o poder.
- Escrutínio e acessão: modo mais usual. Diariamente, vota-se duas vezes — das nove às onze horas após a missa matinal, e das cinco e meia às sete horas da noite. É exigida maioria de dois terços para validade. Em caso de insucesso, anula-se a votação e queima-se o boletim com palha úmida, indicando ao povo que não houve eleição.
A confecção dos boletins e o escrutínio são processos minuciosos demais para detalhar aqui; o que importa é o resultado. Seguem-se as formalidades finais.
Quando um candidato reúne dois terços dos votos, o último cardinal-diácono toca a campainha. Os três cardeais chefes de ordem e o camerlengo aproximam-se do eleito e indagam: — “Aceita a eleição canonicamente feita para o Soberano Pontificado?” Se o eleito responde afirmativamente, todos os dosséis são abaixados, exceto o seu. Os cardeais próximos afastam-se, e o decano pede ao novo Papa que anuncie o nome que deseja tomar.
O mestre das cerimônias lavra então a ata dos trabalhos. O novo Papa, assistido pelos dois primeiros cardeais-diáconos, ajoelha-se no altar, reza, e, atrás dele, revestem-no dos ornamentos pontifícios. Retorna ao altar, concede a bênção apostólica, senta-se no trono e recebe a “adoração” dos cardeais, que, ajoelhados, beijam-lhe o pé e a mão, recebendo dele o ósculo da paz.
O camerlengo passa ao dedo do Papa o Anel do Pescador e o primeiro cardinal-diácono, precedido pela cruz papal, dirige-se à loggia da bênção; derruba-se a divisória e anuncia ao povo: “Annuntio vobis gaudium magnum: habemus Pontificem”.
Abrem-se as portas do conclave: o Papa recebe, para beijo dos pés, o mordomo, o marechal, os conclavistas, os prelados da guarda, seus parentes, seus amigos, os senhores romanos, o corpo diplomático e os fiéis.
Findas as recepções, o camerlengo apresenta ao Papa as chaves do Palácio Pontifício, e o Pontífice toma posse plena de seu supremo poder.
COUBERTIN, Pierre de. Le Conclave. In: Revue du Pays de Caux, 2e année, juillet 1903, nº 4, pp.153-159.
Após dois dias de intensa votação no Palácio Apostólico, o Colégio Cardinalício elegeu o primeiro pontífice nascido nos Estados Unidos: o cardeal Robert Francis Prevost, de Chicago, que assumiu o nome de Papa Leão XIV. A fumaça branca subiu da Capela Sistina nesta quinta-feira, 08 de maio de 2025, coroando quatro escrutínios e encerrando o interregno aberto com o falecimento de Francisco I.
Logo após o anúncio do protodiácono Dominique Mamberti “Annuntio vobis gaudium magnum: habemus pontificem” –, os milhares de fiéis reunidos na Praça de São Pedro irromperam em aplausos, enquanto o novo Papa fazia sua primeira aparição na sacada do balcão central.
O pontificado de Leão XIV se inicia num momento em que o mundo clama por diálogo, solidariedade e renovação ética. Esses mesmos princípios encontram eco nos Valores Olímpicos – Excelência, Respeito e Amizade – que o Comitê Olímpico Internacional instituiu como alicerces dos Jogos Olímpicos. Assim como a eleição papal busca unir diferentes nações, línguas e culturas sob uma mesma liderança, o Ideal Olímpico promove a convivência pacífica e o encontro fraterno entre nações.
Seja na Capela Sistina ou no Estádio Olímpico, a chama que nos guia permanece a mesma: a busca de um mundo melhor, impulsionado pela cooperação e pelo fair play.
Imagem de capa: https://people.com/new-pope-name-leo-xiv-history-11730219