O Comitê Brasileiro Pierre de Coubertin (CBPC) dá prosseguimento à série mensal de matérias que trarão ao público traduções inéditas de escritos de Pierre de Coubertin. De abril de 2025 a março de 2026, vários textos serão traduzidos para o português, resgatando o legado do fundador do Movimento Olímpico para as novas gerações de leitores e entusiastas do esporte.
Durante o mês de dezembro de 2025, uma série especial de três textos apresentará ao público o lado “natalino” de Coubertin, relacionado com os valores do esporte. O primeiro texto da série especial é “SA MAJESTE LA NEIGE”, publicado na Revue Olympique em dezembro de 1907.
SUA MAJESTADE, A NEVE
Conto de Natal
O Esporte, em sua terceira encarnação, apresentava todas as aparências de saúde. Era um homem jovem e robusto, um atleta esplendidamente desenvolvido. A Antiguidade talvez o conhecera sob formas mais harmônicas; na Idade Média, seus modos pareceram mais elegantes e refinados. Mas jamais alcançara proporções tão vastas nem transmitira impressão tão profunda de força. Ainda assim, o Esporte inquietava‑se, às vezes, por sentir vagos mal‑estares, como um aviso de doença possível. Foi consultar um sábio professor que, após auscultá‑lo e palpar‑lhe, balançou a cabeça e disse mais ou menos isto: “Você é, meu amigo, um homem vigoroso, feito para uma carreira admirável; mas que quer que eu diga? O meio em que vive não é completamente sadio; o ar que respira não é puro e daí lhe resultam distúrbios funcionais que eu não vejo muito como evitar”.
O Esporte foi embora pensativo. Sentiu toda a verdade das palavras que acabavam de lhe ser ditas. Certamente o ar que respirava não era puro! Quão carregado de micróbios! Rememorou em pensamento todas as pequenas vilezas — e as grandes também — às quais, com profundo pesar e contra sua vontade, dava pretexto para se manifestarem. Lembrou‑se de todos os falsos esportistas, ávidos por lucro, que se invejavam, armavam armadilhas, só pensando em conquistar a preferência do público, em sobressair e ser admirados; viu novamente a nuvem de parasitas desportivos prontos a adular as más ambições e a aproveitar ocasiões suspeitas. Essas visões o afligiam.
O Esporte saiu da cidade e caminhou muito tempo pelo campo para acalmar o espírito; ao redor, o terreno subia lentamente; a paisagem tornava‑se mais acidentada. A noite caía e com ela a neve, ao princípio em flocos espaçados, depois mais densos, cobrindo pouco a pouco os campos e as casas com uma camada branca. De repente, na curva do caminho, apareceu um velho de longa barba, encapuzado com lã, o olhar alegre por baixo das grossas sobrancelhas, e carregando às costas e sob os braços um feixe de objetos cuja natureza era difícil de discernir à primeira vista, mas que logo se revelaram belos brinquedos. O Esporte sorriu. Lembrou‑se de que era véspera de Natal e reconheceu no bom velhinho dos brinquedos o mensageiro esperado da infância, o clássico Papai Noel. Este parou, saudou amavelmente e, com um gesto, mostrou ao jovem os objetos que trazia. Eram em sua maioria brinquedos desportivos: bolas, dirigíveis, cavaleiros, ciclistas, boxeadores, ginastas… Simbolizando as preocupações hoje dominantes no mundo dos pequenos e ressaltando a influência que o esporte exerce sobre a vida moderna. O jovem olhava com ar ao mesmo tempo divertido e melancólico. “Ah sim! — pensava ele — as crianças pensam em mim desde o berço. Mas quantas entre elas se tornarão verdadeiros esportistas e saberão extrair da prática de exercícios viris toda a força moral que dela pode advir?”.
O bom velhinho, muito habituado a ler os pensamentos, não precisava que essa reflexão fosse enunciada em voz alta para compreender seu sentido. Ele assentiu com a cabeça e, fazendo sinal para que o Esporte o seguisse, voltou pelo caminho. Ambos subiram os flancos de uma colina que parecia crescer à medida que avançavam. Em volta, a paisagem transformava‑se como por mágica. Já não se viam os tranquilos aspectos de um subúrbio civilizado, mas a áspera beleza de uma região montanhosa imersa no duplo repouso da neve e da noite. O céu limpo estava salpicado de incontáveis luzes cujo brilho cintilante parecia aumentar a cada instante. Em seguida, a lua nasceu, lançando ao redor seu pó prateado e projetando sobre a brancura do chão longas sombras azuladas.
Então o bom velhinho segurou o braço do companheiro e disse-lhe apenas esta palavra: olha — apontando para as encostas nevadas que, riscadas por maciços negros de abetos, se estendiam ao longe até a dentilha prestigiada de um grupo de glaciares cuja silhueta robusta fechava o horizonte daquele lado. E eis que, de um dos rebaixos do terreno, surgiam formas que se balançavam estranhamente, correndo para lá e para cá… Logo se aproximaram e distinguiam‑se esquiadores lançados em velocidade sobre a superfície da neve… Depois o bom velhinho, voltando‑se para outro ponto, chamou a atenção do Esporte para um vale gracioso que se abria não muito longe. A meio encosta, uma aldeia agarrava a desordem de suas pitorescas moradias em redor de uma velha igreja de formas compactas, cujos sinos começaram a tocar chamando os fiéis para a missa do galo. Acima do vilarejo, numa pista improvisada, jovens rapazes deslizavam de trenó. Seus gritos de alegria e risos ecoavam no ar cristalino; colegas que aguardavam a sua vez ficavam à beira da pista com grandes tochas de resina que queimavam crepitando.
“Vês — disse finalmente o bom velhinho — esses homens e essas crianças. Eles são teus discípulos mais fiéis. Confia neles; amam‑te, esses, por tua causa e nenhum sentimento mesquinho ou baixo se mistura ao culto que te prestam. A neve os preserva”. Tendo proferido essas palavras, o velho fez um gesto de adeus e afastou‑se. A noite avançava; tinha muito que fazer para terminar de distribuir antes do amanhecer os presentes desejados que trazia consigo. O Esporte ficou só, diante da paisagem admirável cuja luz, agora plena, tornava precisos todos os detalhes. Parados ao pé de uma rocha, os esquiadores haviam acendido fogo e preparavam uma bebida quente, prontos para retomar em breve sua subida até o cume, de onde pretendiam assistir ao nascer do dia; na pista de trenó, uma tocha atrasada, no fim de queimar, lançava alguns reflexos avermelhados; os rapazes no trenó haviam cessado a brincadeira e se consolavam, sem dúvida, em torno de um frugal réveillon. E a grande neve, majestosa e calma, estendia sobre todas as coisas seu manto de silêncio e paz. O Esporte pôs‑se a refletir sobre as palavras do bom velhinho e reconheceu nelas a justeza. Cruel para os inativos, cedendo apenas aos obstinados, a neve não permite que se ajunte muita gente ao redor de um feito atlético; exige que se vá ao seu encontro de longe, renunciando às comodidades da vida citadina para afrontar a dureza da altitude e do espaço; constantemente força os homens a uma solidariedade de esforços, desprovida de todo cálculo de interesse pessoal; constantemente lhes recorda a vigorosa necessidade de resistência, o encorajamento às longas endurecências, únicas capazes de vencer a natureza. Pela contemplação de horizontes grandiosos, pelo contato material do frio e pelo contato moral da solidão, ela eleva os corações e tempera profundamente os caracteres.
O Esporte readquiriu confiança em si mesmo e, inclinando‑se, saudou Sua Majestade a Neve e colocou‑se sob sua purificadora proteção.
Pierre de Coubertin.
In: Revue Olympique, 7ª année, dezembro de 1907, pp. 371-373.
Acompanhe os próximos textos natalinos de Coubertin nos dias 11 e 18 de dezembro de 2025, aqui no site do Comitê Brasileiro Pierre de Coubertin.
Imagem de capa: Fotografia de Coubertin quando criança, colorida digitalmente. Fotografia original de www.olympics.com
